A partir de agora, qualquer pessoa pode comunicar a agressão à polícia. O Ministério Público poderá apresentar denúncia contra o algoz mesmo contra a vontade da mulher. Hoje, apenas a vítima pode representar contra o agressor em caso de lesões corporais leves. E a denúncia fica condicionada à autorização dela - que, em muitos casos, muda de ideia, retira a ocorrência e o caso termina arquivado.
A decisão foi tomada em uma ação direita de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria Geral da República contra o artigo da Lei Maria da Penha que exigia representação apenas por parte da vítima em casos de lesões leves provocadas por atos de violência doméstica. O placar foi de dez votos a um.
A maioria dos ministros afirmou que uma mulher agredida normalmente tem o próprio companheiro como algoz e, por receio de represálias, deixa de registrar ocorrência por atos de violência. Por isso, seria uma afronta ao princípio constitucional da dignidade humana obrigá-la a fazer a representação para que o agressor tivesse alguma chance de ser punido.
Os ministros citaram o artigo da Constituição Federal que dá ao Estado a tarefa de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. Por isso, a intervenção do poder público nessas relações seria permitida. Segundo o relator, ministro Marco Aurélio, as mulheres desistem das queixas em 90% dos casos de lesões corporais leves. Segundo ele, na maior parte das vezes, isso ocorre porque a mulher acredita na possibilidade de mudança do agressor, mas termina em reincidência da agressão.
- Não se coaduna com a razoabilidade deixar a atuação estatal a critério da vítima, cuja expressão de vontade é cerceada pela violência, que provoca o medo de represálias - disse o relator.
O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, foi o único a votar pela manutenção da regra que permite a notificação da agressão apenas pela vítima. Segundo ele, a mudança poderia deixar o agressor ainda mais enfurecido e determinado a maltratar mais a companheira. Além disso, Peluso argumentou que terceiros não costumam saber dos detalhes das agressões, que ocorrem normalmente entre quatro paredes.
- Isso pode desencadear maior violência do parceiro ofensor. Acirra a possibilidade dessa violência, porque ele sabe que estará sujeito a uma situação de impossibilidade de atuação. Ele pode tomar uma atitude de represália mais violenta contra o fato de ter sido processado por uma lesão leve - disse o presidente da Corte.
Na mesma sessão, o tribunal manteve válidos os demais artigos da lei, no julgamento de outra ação proposta pela Presidência da República, ainda na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. O pedido era para que a lei fosse declarada constitucional, para que não houvesse risco de ela deixar de ser aplicada por suposta violação ao direito da igualdade entre homens e mulheres. Todos os integrantes do tribunal afirmaram a importância da Lei Maria da Penha para corrigir a desigualdade histórica entre os gêneros no Brasil.
- A Lei Maria da Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidade ocorrida na privacidade do lar e representou movimento legislativo claro no sentido de garantir a mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação e à justiça - afirmou o ministro.
A decisão foi tomada na primeira parte do julgamento. A ministra Cármen Lúcia aproveitou para revelar que era vítima de preconceito de gênero, mesmo ocupando um posto tão alto no Judiciário.
- Na cabeça daquele que passa (e nos vê em carro oficial), estamos usurpando a posição de um homem. Imagina-se a esposa de alguém que deve estar trabalhando enquanto ela está fazendo compras. Às vezes acham que uma ministra deste tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre. Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa, sem saber que eu era uma dessas. ‘Mas também, agora tem até mulher!’ Imagina - protestou.
A ministra criticou o uso de ditos populares que minimizam a condição feminina. Ela citou como exemplos: “Mulher é que nem bife, quanto mais bate melhor fica”; “Toda a mulher gosta de apanhar. Todas não, só as normais”, e “Ele não sabe porque está batendo, mas ela sabe porque está apanhando”.
- A gente quer viver bem com os homens porque a gente gosta de homem. Queremos ter companheiros, não queremos ter carrascos. Não queremos viver com medo porque o medo é muito ruim. E o medo aniquila a tal ponto que gera a vergonha - afirmou Cármen Lúcia.
Antes da votação, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, disse que condicionar a punição do agressor à apresentação de queixa por parte da vítima é “perpetuar um quadro de violência física contra a mulher”. A representante da Advocacia-Geral da União (AGU), Graice Mendonça, também se manifestou na mesma linha:
- O que é o principio da igualdade senão tratar desigualmente aqueles que se encontram em posição de desigualdade? - sustentou.
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