terça-feira, 12 de março de 2013

"Me libertei de uma vida sem sexo sobre a cadeira de rodas"

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A publicitária Juliana Carvalho, 30 anos, tinha 19 quando ficou paraplégica. De repente, a vida que ela conhecia desapareceu: aulas, festas, privacidade e… sexo. Aqui, ela conta como reconstruiu a vida e venceu essa última barreira. Juliana ganhou o anel Embrace do designer Antonio Bernardo, destinado ao 1º lugar da 13ª promoção Eu, Leitora


   Reprodução

Tinha 19 anos quando perdi os movimentos do pescoço para baixo. Fui para o hospital por causa de uma suspeita de meningite e, em 48 horas, já não podia mais andar. Nos 37 dias que passei lá, desesperada entre a rotina sem visitas da UTI e as dores incessantes, recebi o diagnóstico de lúpus. Uma parte da minha medula havia sido atacada por essa doença autoimune e nenhum médico podia — nem pode, até hoje — dizer ao certo quando e se vou voltar a andar.
Na época, cursava o quinto semestre de publicidade na PUC, em Porto Alegre. Fazia estágio em uma gráfica e frequentava todas as festas que podia. Tinha recém-terminado um namoro de um ano, pois estava no auge da minha vida sexual e queria aproveitá-la com liberdade. Poucas semanas depois, no entanto, adoeci.
Os primeiros sintomas de que havia algo errado com meu corpo foram os mesmos de uma virose: febre, vômitos e um cansaço que parecia não ir embora. Depois de algumas consultas médicas inconclusivas, fui internada no hospital para exames. No primeiro dia, senti as pernas formigarem. No segundo, já não conseguia me mexer na cama. O lúpus havia afetado um vaso importante da minha coluna e causado uma lesão semelhante à de um acidente violento. Mas isso eu só saberia um mês depois, quase no final da internação, quando o diagnóstico de meningite foi descartado e substituído pelo de “mielite transversa por lúpus”. Não sabia que eu tinha essa doença até então!
Passei dias na UTI sem saber se sairia de lá viva. A falta de resposta — dos médicos e do meu próprio corpo — me fazia acreditar que eu estava morrendo. Minha família (mãe, pai e meus quatro irmãos) acompanhava tudo de perto, mas devido às regras da UTI, só ficava comigo 15 minutos por dia. Por causa da suspeita de meningite, eu permanecia numa redoma de vidro. Depois que fui para o quarto, meu ex-namorado passou a me visitar diariamente. Ficava ao meu lado por horas, mas não podia me beijar por causa das minhas baixas defesas. Tê-lo ao meu lado foi importantíssimo nessa fase.
Um mês depois de ter entrado — andando — no hospital, voltei para casa nos braços do meu irmão. Minha mãe havia improvisado uma cama na sala, que foi transformada no “quarto da Juju” pelos anos que se seguiram. Precisava de ajuda até para me limpar e esperaria muito tempo pelo prazer de usar calcinhas novamente, já que, na época, só me restavam as fraldas. Meus amigos me visitavam para contar as novidades da faculdade e, dois meses depois do meu retorno, dei o primeiro passeio, acompanhada do meu ex. Fomos a um mirante que tem uma vista linda de Porto Alegre. Ficamos no carro conversando até que ele me beijou. Foi maravilhoso provar de novo o que, para mim, era o melhor beijo do mundo. Lembrei-me da nossa última transa, de pé no banheiro da sua casa. Aquilo parecia descolado da realidade. Talvez por isso, não tive coragem de aceitar quando ele pediu para reatar o namoro, semanas depois.
"Eu beijava amigas e caras, mas ainda
me sentia carente de sexo e amor”
Os beijos que trocamos nessa época não avançaram para nada muito quente. Eu não imaginava como seria transar com alguém naquela situação e, para falar a verdade, não achava que ficaria assim por muito tempo.
Minha rotina nos meses posteriores à lesão foi agitada e otimista. Fazia fisioterapia e massagem várias vezes por semana e, em apenas quatro meses, estava de volta à faculdade. Levava um gravador para as aulas e transcrevia tudo na volta, com uma caligrafia infantil que minha mão direita conseguia fazer a duras penas. Estava confiante em minha evolução: recuperava aos poucos o movimento dos braços e, na minha cabeça, reconquistar a força nas pernas era questão de tempo. Mas estava carente. Meu último beijo já dava saudade e meu ex, a quem eu dispensara, começava a ficar com outras garotas. Para piorar, me sentia horrível. A quimioterapia contra o lúpus me fez perder muito cabelo, apesar de não ter me deixado careca. Por causa dos corticoides, eu, que sempre fui magra, mas tinha curvas que chamavam a atenção dos garotos, engordei 20 quilos e fiquei com o rosto muito inchado. Eu quase não me reconhecia e me ver no espelho tão diferente do normal me entristecia. Me sentia feia, sozinha e com um baita tesão reprimido.
Pensei em me masturbar, mas a ideia parecia inviável. Na hora do banho, quem me levava até o banheiro (na maioria das vezes, meu irmão) esperava com a porta aberta para o caso de eu precisar de ajuda. De dia, a família circulava pelos meus aposentos o tempo todo — afinal, eu morava na sala. Mesmo assim, arrisquei a manobra algumas noites. Mas era difícil encaixar a mão. Quando conseguia, sentia só uma ardência incômoda na ponta dos dedos, que ainda tinham pouca sensibilidade. Lá dentro, nada. Pesquisei no Google como outros cadeirantes faziam para transar, mas quase não havia informações sobre isso. Meu prazer estava à deriva.
Um dia, dois anos depois da lesão, fui com uma amiga a uma festa. No meio da noite, depois de umas tantas cervejas, nos beijamos. Antes da doença, eu costumava beijar algumas das minhas amigas por diversão. A coisa nunca evoluía para o sexo, mas chegávamos a trocar beijos entre três ou quatro meninas. Não raro, incluíamos um rapaz na brincadeira. Depois da doença, essa passou a ser a minha forma “padrão” de ficar com alguém. Saía à noite com a turma e, embalada pelo álcool, trocava carícias com amigas, alguns amigos gays e, mais raramente, com meninos que conhecia na noite. Esses encontros me supriam parte da carência, mas não tinham uma ligação direta com o sexo — e muito menos com amor.
Só fui gostar de alguém de verdade quando já estava com 22 anos. Era um ex-colega de colégio, por quem eu fora apaixonada na quarta série. Nos vimos num reencontro da turma e passamos a nos reunir com frequência. Assistíamos a jogos de futebol, fazíamos churrasco e ficávamos horas jogando conversa fora. Aos poucos, o clima foi se tornando mais palpável. Havia um impedimento, porém: apesar de estar sempre sozinho, ele namorava havia quatro anos. Ele evitava contato físico, mas na internet a coisa rolava solta. Trocávamos e-mails várias vezes por dia e nenhum deles terminava sem um “te adoro” ou“estou morrendo de saudade” da parte dele.
Em pouco tempo, eu já estava completamente apaixonada e me imaginava, com ele, andando de mãos dadas pela rua. Na minha fantasia, estava recuperada. Mas nada disso aconteceu. Depois de meses de e-mails açucarados, meu amor disse estar confuso. Também confessou que achava a cadeira de rodas um desafio, apesar de não tê-la usado para justificar seu afastamento.
O fora desse cara foi um grande balde de água fria e a primeira das muitas rejeições que se seguiram. Isso tudo era novo para mim. Sempre fui bonita e, no colégio, podia escolher com quem queria ficar. Para piorar, pouco depois de fazer 23 anos, tive uma trombose na perna e precisei me internar novamente. Entrei em depressão e, no hospital, cheguei a pensar em suicídio. Não aguentava mais as limitações do meu corpo e as constantes visitas a médicos, hospitais e farmácias. Em vez de encarar minha rotina, me deixei levar. Não queria sair da cama e chorava muito. Mas, enquanto pensava em morrer, percebi que não havia maneira de uma cadeirante fazer isso sozinha e que, caso falhasse, poderia acabar numa situação mais limitadora ainda.
O episódio da trombose foi a minha chegada ao fundo do poço, mas teve também aquele efeito de me impulsionar a subir. Numa conversa com uma amiga, estabeleci uma meta para acabar com a depressão: me tornaria independente nas tarefas diárias. Para isso, eu precisava de aulas, treinamento e muito esforço da minha parte.
A grande virada aconteceu quando, em 2005, consegui uma vaga no Instituto Sarah Kubitschek, em Brasília. Eles são especialistas em reabilitação de lesionados e ajudam pessoas a ganhar independência no dia a dia. Chegando lá, me senti em casa. Nunca havia convivido com tantas pessoas com lesão medular, e, ainda por cima, jovens! Pela primeira vez, pude dividir com outras mulheres a angústia de ser uma amputada sexual. Estava sem transar havia cinco anos e, finalmente, alguém podia falar comigo sobre o assunto. Uma das internas me explicou como me posicionar na cama na hora do sexo e driblar a falta de movimento do quadril. Aquilo era um sopro de esperança. Cada lesionada tem um limite diferente do que consegue sentir e eu teria que encontrar o meu.
Depois de alguns dias internada, conheci um mato-grossense que estava havia dez meses no hospital. Ele sofreu um acidente grave de carro e ficou três meses em coma. Teve várias fraturas e enfrentou uma recuperação lenta. Agora, tentava ganhar de volta as funções do joelho. De cara, a atração foi mútua. Dávamos muita risada juntos e não demorou para que o nosso primeiro beijo acontecesse. A química foi instantânea e, com ele, me senti à vontade para ir cada vez mais adiante. Já nos primeiros dias, o beijo era forte e as mãos dele começaram a explorar o meu corpo. Íamos para a enfermaria e avançávamos nas carícias. Foi lá que percebi que, mesmo sem sentir minha perna, a visão dele a acariciando me dava tesão. Também descobri, por causa de suas mãos, que minha vagina ainda tinha alguma sensibilidade. Ele fazia o truque conhecido como “vem cá”, em que, com os dedos na vagina, se faz o movimento de fechar a mão, como se estivesse chamando alguém. Isso pressionava o ponto G e eu enlouquecia. Ficamos um mês nessa “pegação” exploratória enquanto as enfermeiras faziam vistas grossas para os nossos amassos — o clima do hospital é de recuperação da vida em todos os sentidos, então o pessoal finge que não vê quando duas pessoas começam a se reabilitar também dessa forma. Em outra situação, eu já teria topado ir para a cama com o cara. Mas ainda tinha medo de não saber o que fazer na hora e receio de me despir com um corpo tão diferente daquele que eu tinha antes. Além disso, eu estava redescobrindo algumas sensações prazerosas. O beijo dele no meu seio, por exemplo, ativava as lembranças e eu podia imaginar a sensação por inteiro. Até que chegou o dia em que me vi pronta para perder a virgindade pela segunda vez. Como o hospital permitia saídas aos finais de semana, propus irmos a um motel.

Pesquisei até achar um local que tivesse estrutura para cadeirantes e lá fomos nós de táxi. À equipe médica, dissemos que iríamos a uma balada. Eu estava mais decidida do que nunca. Havia aprendido no hospital a sair sozinha da cadeira e usei o truque para pular em cima da cama. Fui tirando a roupa rapidamente e esperei que ele tirasse a dele.
Me recostei sobre a cama e então vi algo que seria essencial na minha vida amorosa a partir de então: um espelho no teto. Ele se deitou ao meu lado e começou a beijar meus pés. Ver aquela cena me deixava muito excitada. Tínhamos acumulado tanto tesão e intimidade que estávamos, ambos, prontíssimos.
Por causa das nossas prévias, eu também me sentia muito à vontade com meu corpo. Ele beijava meus seios e eu ia à loucura. Com os dedos dele, tive um dos orgasmos mais fortes da minha vida. Eu só pensava em agradecer ao universo. Havia passado cinco anos acreditando que estava morta sexualmente e a vida acabara de me provar o contrário. Estava muito, muito feliz. Passamos dez horas no motel e transamos a noite toda. Já era manhã quando voltamos ao hospital. Eu havia vencido minha última barreira de volta à vida: além de trabalhar e me virar sozinha, agora também transava. Tive uma genuína sensação de que nada é impossível. Se pudesse, teria saído do quarto pulando e correndo de alegria.
Voltamos mais uma vez ao motel antes de o nosso tempo de internação acabar. Nos despedimos com beijos apaixonados e ele foi para Rondonópolis e eu, para Porto Alegre. Já fazia planos de viagem quando, dias depois, ele me ligou e disse que o namoro não daria certo. O motivo? A distância. Chorei na hora, mas algo havia ficado dessa experiência. Agora eu podia transar e ter prazer de novo.
Foi com essa certeza que me abri para conhecer outros caras e investir em novas posições. Com um não cadeirante pude explorar melhor quais são as carícias que me dão mais prazer nesta nova fase. Conheci também um “devoto”, alguém que sente tesão por mulheres em cadeira de rodas, e ficamos algumas vezes. Não sabia o que isso significava até conhecê-lo pela internet e achei interessante. Apesar de muita gente enxergar o devoteísmo como uma tara de loucos dominadores, não julgo esse fetiche. Mulheres cadeirantes escolhem com quem vão ficar e, se alguém tem tesão especial por elas, melhor.
Há cerca de dois meses, conversando com um amigo, percebi que tenho um novo desafio pela frente. Quero viver um amor por completo. Já me viro bem com casos esporádicos, mas confesso que achava o fardo de um namoro pesado demais para entregá-lo a alguém. Mas não é. Moro sozinha, trabalho e sou mais bem-humorada que muita gente que conheço. Por causa de tudo o que vivi, sou também muito mais madura.
Cinco anos se passaram desde que perdi a virgindade pela segunda vez. Não tenho previsão de voltar a andar e decidi, por isso, viver o presente da melhor maneira que posso. Tanto que resolvi passar três meses na Nova Zelândia visitando meu irmão e minha irmã, que moram aqui. Atravessei o mundo sem medo e volto ao Brasil só na metade de abril.
Estou matando a saudade deles e me divertindo muito. E devo dizer que a Oceania é o paraíso da mulher solteira — desde que cheguei, em janeiro, já fiquei com alguns caras. Dá pra ser feliz e ter prazer na minha vida. Por isso, desde a minha virada, converso com meninas sobre sexo na vida de cadeirante e explico que ninguém precisa virar assexuada por causa da lesão. Escrevi um livro, Na Minha Cadeira ou Na Tua?, para dividir a minha história e encorajar outras pessoas a lutarem pelo seu prazer.


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